Revista UPpharma nº 178- ano 42, Março/Abril 2019
por Deborah Portilho
Se você está lendo este parágrafo, é sinal de que a pergunta-título deste artigo captou sua atenção. Mas o que talvez você ainda não tenha se dado conta é de que qualquer laboratório farmacêutico que fabrique e/ou comercialize medicamentos “de marca” (novos ou similares) pode vir a se deparar com essa dúvida e com a insegurança jurídica dela decorrente. Além do mais, apesar de essa questão não ser nova, uma solução jamais foi proposta, seja em âmbito administrativo ou legislativo, e, para complicar a situação, o problema ganhou uma nova dimensão a partir da implementação da Orientação de Serviço (“O.S.”) nº 43/2017, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), no início de 2018.
Nesse sentido, observe-se que a principal mudança implementada pela citada O.S. foi a adoção obrigatória do sistema POCA (Phonetic and Orthographic Computer Analysis)[1] para análise e avaliação de possíveis colidências gráficas e fonéticas entre os nomes/marcas de medicamentos que são submetidos à aprovação da ANVISA. Ocorre que a adoção do POCA não implicou apenas em um aumento no número de nomes/marcas apontadas como supostamente colidentes, mas também em um aumento no número de recusas de nomes/marcas de medicamentos submetidos à ANVISA para registro dos respectivos produtos. Por seu turno, esse aumento no número de marcas recusadas, além de gerar uma demora na concessão do registro sanitário e, consequentemente, na comercialização do medicamento correspondente, gera também uma falsa impressão para o laboratório requerente desse registro de que a avaliação do nome/marca do produto, feita pela ANVISA, foi exaustiva e conclusiva. Só que, infelizmente, não foi, não é e não será.
Isso porque a base de dados do sistema POCA inclui apenas as marcas dos medicamentos já aprovados pela ANVISA para comercialização, o que significa que as marcas registradas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), mas sem produto correspondente no mercado, não constam da base do POCA.
Assim sendo, é possível que o laboratório que teve sua marca avaliada e aprovada pela ANVISA, ao colocar seu medicamento no mercado, seja notificado por uma empresa titular de um registro de uma marca semelhante – devidamente concedido pelo INPI e anterior ao registro sanitário do medicamento em questão – para descontinuar a sua comercialização. Nessa situação, qual registro deveria prevalecer: (i) o registro sanitário do medicamento que já está sendo regularmente comercializado; ou (ii) o registro anterior da marca concedida pelo INPI, mas que ainda não identifica qualquer medicamento no Brasil?
Observe-se que, além dessa hipótese, podem existir diversas outras e cada uma pode ter uma solução diferente, a qual irá depender das circunstâncias e das especificidades do caso concreto. De qualquer forma, vale discutir aqui os aspectos gerais relacionados à competência das duas autarquias e aos direitos por elas concedidos.
Nesse sentido, cabe sublinhar que, de acordo com o art. 129[2], da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996 – LPI), a empresa detentora de um registro de marca validamente expedido pelo INPI possui a propriedade sobre aquela marca e, por via de consequência, o direito ao seu uso exclusivo, em todo o território nacional, em relação aos produtos para os quais ela foi registrada. Dessa forma e considerando que esse é um direito assegurado constitucionalmente (art. 5º, XXII e XXIX, da Constituição Federal), em princípio, essa empresa pode impedir o uso de marca igual ou semelhante, que seja suscetível de causar confusão com sua marca.
Com relação ao registro sanitário, não há qualquer dúvida de que ele seja necessário para a comercialização dos medicamentos em geral, nem de que seja a ANVISA a autoridade competente para a concessão desse registro. Portanto, resta indagar se a ANVISA é ou não competente para analisar e avaliar os nomes/marcas dos medicamentos submetidos a registro. E a resposta é indubitavelmente afirmativa, inclusive em relação às marcas já registradas perante o INPI, haja vista existir previsão expressa para essa avaliação no art. 5º da Lei nº 6.360/76 (com redação dada pela Lei nº 6.480/77)[3], que é a lei que rege a Vigilância Sanitária. Assim, em vista dessa previsão legal, a ANVISA pode não autorizar o uso de uma marca, mesmo que devidamente registrada perante o INPI, com base no risco sanitário[4] que aquela marca possa apresentar para a saúde pública.
Por seu turno, como já exposto acima, o direito de propriedade sobre a marca é adquirido com a concessão do respectivo registro pelo INPI, que é a autoridade competente para a concessão de direitos de Propriedade Industrial. Contudo, se o produto que essa marca registrada visa identificar for um medicamento, seu uso só poderá ser feito com a necessária aprovação da ANVISA, pois é ela a única autoridade competente para a avaliação da existência de risco sanitário. Entretanto, a situação inversa não se verifica. Com efeito, considerando que o registro marcário não é condição para a concessão do registro sanitário (e nem poderia ser pois não há qualquer obrigatoriedade legal nesse sentido), o registro sanitário concedido pela ANVISA, nele incluído o nome/marca não registrada do medicamento, prescinde da avaliação do INPI.
Além do mais, é preciso notar que o direito de propriedade não é absoluto, pois o Poder Público pode impor certas limitações para seu exercício, como ocorre, por exemplo, com a propriedade sobre bens imóveis, por meio dos institutos da desapropriação, do tombamento, entre outros. Da mesma forma, o direito de propriedade sobre as marcas pode sofrer limitações ou condições (como no caso da autorização de uso pela ANVISA), sem que isso implique na extinção desse direito.
Por outro lado, não se pode deixar de salientar que, enquanto o registro de marca concedido pelo INPI constitui um direito de propriedade garantido constitucionalmente, o registro sanitário concedido pela ANVISA não se consubstancia em um direito, mas tão somente em uma autorização de comercialização. Mas será que seria justo decidir em favor do registro da marca concedido pelo INPI, em detrimento do registro do medicamento que já está no mercado?
Como regra geral, no caso de ausência de um critério normativo que possa solucionar o problema, deve ser aplicado o “princípio supremo da justiça”, de acordo com o qual a forma mais justa é a que deve ser escolhida. Mas qual seria ela?
Como se verifica, o problema que foi aqui colocado necessita de uma solução não apenas justa, mas também eficaz e definitiva, o que significa que essa solução precisa ser de natura legislativa. Mas como a questão sequer foi discutida no âmbito administrativo, até que essa lacuna normativa seja suprida pelo Poder Legislativo, os conflitos que porventura surjam terão que ser tratados pelo Poder Judiciário, devendo o magistrado avaliar, igualmente, os interesses das empresas concorrentes, do Estado e dos consumidores, de modo a decidir pelo “remédio” mais justo e mais indicado para atender o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
©Deborah Portilho* – março de 2019
Contato: deborah.portilho@dportilho.com.br
* Advogada especializada na área de Propriedade Industrial, Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pela Academia do INPI e com MBA em Marketing pelo Ibmec/RJ; professora de Direito de Propriedade Industrial da pós-graduação (LL.M.) em Direito Corporativo do Ibmec/RJ; sócia-diretora da D.Portilho Consultoria, Auditoria & Treinamento em Propriedade Intelectual; presidente da Comissão de Direito da Moda da OAB/RJ (CDMD); membro do Conselho Consultivo e de Ética da Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial (ABAPI) e membro também da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual – ABPI e do Pharmaceutical Trade Mark Group – PTMG.
[1] POCA (Phonetic and Orthographic Computer Analysis) é o nome do sistema utilizado pelo FDA (U. S. Food and Drug Administration), projetado para auxiliar na identificação de possíveis conflitos fonéticos e ortográficos.
[2] Art. 129 da LPI. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148.
[3] Art. 5º – Os produtos de que trata esta Lei [6.360/76] não poderão ter nomes ou designações que induzam a erro.
[…]
§ 3º – Comprovada a colidência de marcas, deverá ser requerida a modificação do nome ou designação do produto, no prazo de 90 (noventa) dias da data da publicação do despacho no Diário Oficial da União, sob pena de indeferimento do registro [no Ministério da Saúde / ANVISA].
[4] Essa avaliação específica não é feita pelo INPI, não só porque o risco sanitário está fora do escopo de sua atuação, como também porque as análises de colidência feitas por seus Examinadores levam em conta tão somente as marcas depositadas e/ou registradas perante aquele Instituto, o que não inclui aquelas que estão no mercado (possivelmente há anos ou mesmo décadas), mas que não foram sequer depositadas naquele Instituto.